quarta-feira, 6 de agosto de 2008
Macau, uma história portuguesa na China
Elizabeth Dehnhardt da Silva Kieling, Historiadora formada pela ULBRA – Universidade Luterana do Brasil - Canoas – RS. Residindo atualmente em Shenzhen-China. Escreve um livro sobre Macau.
Qualquer ocidental ao desembarcar no Extremo Oriente, recebe de improviso uma série de sensações novas, provenientes de um meio em que as mesmas causas geradoras da vida apresentam um efeito com o seu quê de diferente. O visitante nesse primeiro encontro, na maioria das vezes, tece uma análise errônea, como ao ver certos quadros da vida oriental como atrasos de civilização. Estes “atrasos”, nada mais são que costumes e hábitos diferentes, dirigidos a nós possuidores de uma mentalidade diversa na percepção de certos fenômenos da vida social.
O chinês é arraigado a princípios ancestrais conservadores, emérito das tradições e sentido de modo diferente, não é com facilidade que adota novos processos de vida. Faz com tranqüilidade aquilo que viu fazer seus pais, e geralmente não procura discutir se essa maneira de proceder tem muito ou pouco de racional. Por isso o executar de trabalhos rudes e penosos tanto por homens e mulheres indistintamente. Esse povo com suas crenças, cultura e sociedade já tão fortemente fixados foi o que os portugueses encontraram por toda a Ásia, no caso específico em Macau.
Diferentemente do Brasil, o processo colonizatório não teve o mesmo resultado, que foi o da total e completa assimilação cultural lusitana, houve sim um convívio paralelo, produto único do intercâmbio e simbiose cultural entre China e Ocidente que perdura por mais de 450 anos de história.
Desde que os portugueses estabeleceram um porto comercial na Península entre 1554/1557, torna-se Macau o principal ponto de acesso à China, criando um canal privilegiado para o intercâmbio mútuo de conhecimento científico e tecnológico ocidental e chinês. Depois de Marco Pólo, é esse intercâmbio, responsável pela divulgação da cultura chinesa por toda a Europa.
Durante as dinastias Ming (1368-1644) e Qing (1644-1911) vários missionários católicos entram na China através de Macau, promovendo e divulgando a fé cristã, entre conceitos filosóficos, por milênios enraizados, como o Confucionismo, Taoísmo e Budismo. Trazem consigo além das palavras e textos utilizados à evangelização, também outras tantas atividades culturais e científicas como nas áreas da matemática, astronomia, arquitetura... Constituindo um notável exemplo de caráter multicultural que torna Macau um patrimônio vivo de raiz européia que encontra-se ainda intacta sobre solo chinês. Macau ilustra um capítulo na História da Humanidade através do encontro duradouro entre o Ocidente e a China, visível em sua arquitetura, templos, igrejas, livrarias, restaurantes, nomenclatura de ruas e estabelecimentos, festas típicas, enfim, todo um contexto regional marcado pela forte presença da cultura milenar chinesa em conjunto com hábitos e “modus vivendi” ocidental, gerando um excepcional legado patrimonial. As condições de estabilidade social e coexistência pacífica, no geral, em muito contribuiu para o bom estado e conservação desse patrimônio, através da manutenção da integridade urbana das zonas históricas, como a preservação dos monumentos arquitetônicos locais. Essa “identidade” histórica, vê-se hoje acrescida de uma arquitetura moderna e futurista, presente na construção dos cassinos, avenidas e pontes que fazem a ligação das partes extremas e ilhas adjacentes como Coloane e Taipa.
A partir de Dezembro de 1999 a administração local, antes totalmente portuguesa, passa a ser assumida pela China, porém permanecendo ainda presente em alguns domínios como o do judiciário, cujas leis adaptadas aos moldes chineses passa pelo crivo de um juiz de direito ainda designado por Portugal. Essa (RAEM) Região Administrativa Especial de Macau possui a mais elevada densidade populacional do mundo, com uma renda per capita das mais elevadas da Ásia. No diminuto território cuja área total é de 23,8Km2 incluindo a Península de Macau com 7,8Km2, respira uma atmosfera cosmopolita, tolerante nas suas práticas e vivências. Calcula-se que a população gire em torno de 450.000 habitantes, onde cerca de 96% de etnia chinesa, provenientes de diferentes províncias, os restantes 4% são compostos por portugueses, povos oriundos de países de língua portuguesa, outros europeus , filipinos e tailandeses. As línguas oficiais são o Português e Chinês, sendo o dialeto cantonense o mais falado. Tais línguas são utilizadas nos departamentos governamentais, documentos oficiais e comunicados. O inglês funciona como língua franca de comunicação, usada nos negócios, lojas, restaurantes e hotéis.
A moeda oficial corrente é a Pataca (MOP$), equivalendo oito patacas a um dólar americano. Hoje a atividade responsável por 79% da receita de Macau encontra-se ligada ao jogo e aos cassinos, por isso considerada a “Las Vegas” da Ásia. Por muitas décadas este é responsável pelo exotismo, mistério, decadência e glória de Macau.
Apresento Macau como “pano de fundo” para poder estabelecer um paralelo entre dois casos bem específicos como contemporâneos diante dos projetos expansionistas europeus. Diferentemente da Ásia, o Brasil assume de forma muito mais abrangente a língua e costumes portugueses, gerando o que se pode chamar de um longo e progressivo processo e aculturação, onde culturas já existentes como a indígena pouco a pouco vem cedendo espaço ao “novo”, tornando-se estas “diluídas” ou assimiladas dentro dos contextos sociais que a partir da chegada portuguesa se configuram. Esse passado histórico para nós é tido por “pré-colombiano” ou “pré-hispânico”. Inicia-se com a descoberta da América pelo genovês Cristóvão Colombo (1492), que chegando ao Caribe julga tratar-se da Índia, eis que a seus habitantes chama de “índios”. Este é seguido pelo português Vasco da Gama que em 1498 chega ao litoral ocidental da Índia. Entre os séculos XIV e XIX todas as partes não exploradas da Terra passam a ser “descobertas”. No caso da América encontram populações organizadas em tribos, vivendo como caçadores coletores, também outras civilizações em estágio tecnológico, em vários aspectos mais avançados que a Europa, como Astecas, Maias e Incas . Estes colonizadores encontram tribos rivalizadas entre si, muitas praticando o canibalismo. Algumas resistindo à presença invasora, já outras pelo fascínio deste “novo” e pelo tanto de novidades que traziam, a iniciar pelas grandes naus com suas velas infladas, as indumentárias, roupas e botas, armas de fogo e canhões... aderem pela curiosidade e desejo. Foram assim os portugueses dominando o território. Devo citar aqui as doenças, que pela simples presença “branca” assola milhares e milhares de nativos (gripe, catapora, varíola, sarampo...) cuja medicina ritualística e ervas não conseguem aplacar. A questão do imaginário também o foi relevante. Existia a crença de que a vida passava por ciclos, e que cada período ruim de catástrofes e maselas sobrepunha-se outro de bem aventurança. Motivos somados, pouco a pouco as populações e grupos vão se extinguindo, muitos sem sequer deixar vestígios que não os arqueológicos. Assim sucedeu-se a dominação portuguesa em terras brasileiras, que oposto da Ásia acaba assumindo de forma mais evidente a cultura européia. Já a China, possuidora de uma cultura e civilização muito mais antiga e estruturada, o processo de dominação dá-se de forma diferente. No caso específico de Macau ocorre um “paralelo” cultural, onde duas culturas coexistem lado a lado sem que uma consiga interferir ou sobrepujar a outra. Em nosso país, primeiramente diante da dominação portuguesa, mais tarde negros vindos da África, italianos, alemães, japoneses, chineses, poloneses entre outros. O “mix” cultural intensifica-se, calcado numa forte presença lusitana ainda dominadora, presente em todas as instancias da sociedade que começa a estabelecer seus contornos, tendo por produto um indivíduo miscigeno, fruto das diversas raízes a quem designamos chamar de “povo brasileiro”. Em Macau o “macaense” é o resultado do produto europeu – chinês. Esse com traços visivelmente asiáticos vê-se como um indivíduo meio a margem, visto que habita um espaço de forte influencia chinesa que prima pela sua ancestralidade e costumes. Encontra-se, portanto o Brasil irmanado a Macau apenas no que tange as marcas e influencias deixadas pelos colonizadores em suas terras, sendo estas assumidas de forma totalmente diferente por um país e o outro.
Concluo, pois, que povos e culturas fortemente enraizados, dificilmente são, em sua totalidade, dominados.
Acredito que com a transferência total de Macau (50 anos) aos domínios chineses a presença lusitana seja totalmente aniquilada ou absorvida, permanecendo viva apenas nos monumentos arquitetônicos já tombados, e na insistente presença de uma minoria portuguesa que por saudosismo ou identidade chula, permanecerá.
Elizabeth Dehnhardt da Silva Kieling
Historiadora formada pela ULBRA –
Universidade Luterana do Brasil- Canoas – RGS
Residindo atualmente na China ( Shenzhen), escreve um livro sobre Macau.
O chinês é arraigado a princípios ancestrais conservadores, emérito das tradições e sentido de modo diferente, não é com facilidade que adota novos processos de vida. Faz com tranqüilidade aquilo que viu fazer seus pais, e geralmente não procura discutir se essa maneira de proceder tem muito ou pouco de racional. Por isso o executar de trabalhos rudes e penosos tanto por homens e mulheres indistintamente. Esse povo com suas crenças, cultura e sociedade já tão fortemente fixados foi o que os portugueses encontraram por toda a Ásia, no caso específico em Macau.
Diferentemente do Brasil, o processo colonizatório não teve o mesmo resultado, que foi o da total e completa assimilação cultural lusitana, houve sim um convívio paralelo, produto único do intercâmbio e simbiose cultural entre China e Ocidente que perdura por mais de 450 anos de história.
Desde que os portugueses estabeleceram um porto comercial na Península entre 1554/1557, torna-se Macau o principal ponto de acesso à China, criando um canal privilegiado para o intercâmbio mútuo de conhecimento científico e tecnológico ocidental e chinês. Depois de Marco Pólo, é esse intercâmbio, responsável pela divulgação da cultura chinesa por toda a Europa.
Durante as dinastias Ming (1368-1644) e Qing (1644-1911) vários missionários católicos entram na China através de Macau, promovendo e divulgando a fé cristã, entre conceitos filosóficos, por milênios enraizados, como o Confucionismo, Taoísmo e Budismo. Trazem consigo além das palavras e textos utilizados à evangelização, também outras tantas atividades culturais e científicas como nas áreas da matemática, astronomia, arquitetura... Constituindo um notável exemplo de caráter multicultural que torna Macau um patrimônio vivo de raiz européia que encontra-se ainda intacta sobre solo chinês. Macau ilustra um capítulo na História da Humanidade através do encontro duradouro entre o Ocidente e a China, visível em sua arquitetura, templos, igrejas, livrarias, restaurantes, nomenclatura de ruas e estabelecimentos, festas típicas, enfim, todo um contexto regional marcado pela forte presença da cultura milenar chinesa em conjunto com hábitos e “modus vivendi” ocidental, gerando um excepcional legado patrimonial. As condições de estabilidade social e coexistência pacífica, no geral, em muito contribuiu para o bom estado e conservação desse patrimônio, através da manutenção da integridade urbana das zonas históricas, como a preservação dos monumentos arquitetônicos locais. Essa “identidade” histórica, vê-se hoje acrescida de uma arquitetura moderna e futurista, presente na construção dos cassinos, avenidas e pontes que fazem a ligação das partes extremas e ilhas adjacentes como Coloane e Taipa.
A partir de Dezembro de 1999 a administração local, antes totalmente portuguesa, passa a ser assumida pela China, porém permanecendo ainda presente em alguns domínios como o do judiciário, cujas leis adaptadas aos moldes chineses passa pelo crivo de um juiz de direito ainda designado por Portugal. Essa (RAEM) Região Administrativa Especial de Macau possui a mais elevada densidade populacional do mundo, com uma renda per capita das mais elevadas da Ásia. No diminuto território cuja área total é de 23,8Km2 incluindo a Península de Macau com 7,8Km2, respira uma atmosfera cosmopolita, tolerante nas suas práticas e vivências. Calcula-se que a população gire em torno de 450.000 habitantes, onde cerca de 96% de etnia chinesa, provenientes de diferentes províncias, os restantes 4% são compostos por portugueses, povos oriundos de países de língua portuguesa, outros europeus , filipinos e tailandeses. As línguas oficiais são o Português e Chinês, sendo o dialeto cantonense o mais falado. Tais línguas são utilizadas nos departamentos governamentais, documentos oficiais e comunicados. O inglês funciona como língua franca de comunicação, usada nos negócios, lojas, restaurantes e hotéis.
A moeda oficial corrente é a Pataca (MOP$), equivalendo oito patacas a um dólar americano. Hoje a atividade responsável por 79% da receita de Macau encontra-se ligada ao jogo e aos cassinos, por isso considerada a “Las Vegas” da Ásia. Por muitas décadas este é responsável pelo exotismo, mistério, decadência e glória de Macau.
Apresento Macau como “pano de fundo” para poder estabelecer um paralelo entre dois casos bem específicos como contemporâneos diante dos projetos expansionistas europeus. Diferentemente da Ásia, o Brasil assume de forma muito mais abrangente a língua e costumes portugueses, gerando o que se pode chamar de um longo e progressivo processo e aculturação, onde culturas já existentes como a indígena pouco a pouco vem cedendo espaço ao “novo”, tornando-se estas “diluídas” ou assimiladas dentro dos contextos sociais que a partir da chegada portuguesa se configuram. Esse passado histórico para nós é tido por “pré-colombiano” ou “pré-hispânico”. Inicia-se com a descoberta da América pelo genovês Cristóvão Colombo (1492), que chegando ao Caribe julga tratar-se da Índia, eis que a seus habitantes chama de “índios”. Este é seguido pelo português Vasco da Gama que em 1498 chega ao litoral ocidental da Índia. Entre os séculos XIV e XIX todas as partes não exploradas da Terra passam a ser “descobertas”. No caso da América encontram populações organizadas em tribos, vivendo como caçadores coletores, também outras civilizações em estágio tecnológico, em vários aspectos mais avançados que a Europa, como Astecas, Maias e Incas . Estes colonizadores encontram tribos rivalizadas entre si, muitas praticando o canibalismo. Algumas resistindo à presença invasora, já outras pelo fascínio deste “novo” e pelo tanto de novidades que traziam, a iniciar pelas grandes naus com suas velas infladas, as indumentárias, roupas e botas, armas de fogo e canhões... aderem pela curiosidade e desejo. Foram assim os portugueses dominando o território. Devo citar aqui as doenças, que pela simples presença “branca” assola milhares e milhares de nativos (gripe, catapora, varíola, sarampo...) cuja medicina ritualística e ervas não conseguem aplacar. A questão do imaginário também o foi relevante. Existia a crença de que a vida passava por ciclos, e que cada período ruim de catástrofes e maselas sobrepunha-se outro de bem aventurança. Motivos somados, pouco a pouco as populações e grupos vão se extinguindo, muitos sem sequer deixar vestígios que não os arqueológicos. Assim sucedeu-se a dominação portuguesa em terras brasileiras, que oposto da Ásia acaba assumindo de forma mais evidente a cultura européia. Já a China, possuidora de uma cultura e civilização muito mais antiga e estruturada, o processo de dominação dá-se de forma diferente. No caso específico de Macau ocorre um “paralelo” cultural, onde duas culturas coexistem lado a lado sem que uma consiga interferir ou sobrepujar a outra. Em nosso país, primeiramente diante da dominação portuguesa, mais tarde negros vindos da África, italianos, alemães, japoneses, chineses, poloneses entre outros. O “mix” cultural intensifica-se, calcado numa forte presença lusitana ainda dominadora, presente em todas as instancias da sociedade que começa a estabelecer seus contornos, tendo por produto um indivíduo miscigeno, fruto das diversas raízes a quem designamos chamar de “povo brasileiro”. Em Macau o “macaense” é o resultado do produto europeu – chinês. Esse com traços visivelmente asiáticos vê-se como um indivíduo meio a margem, visto que habita um espaço de forte influencia chinesa que prima pela sua ancestralidade e costumes. Encontra-se, portanto o Brasil irmanado a Macau apenas no que tange as marcas e influencias deixadas pelos colonizadores em suas terras, sendo estas assumidas de forma totalmente diferente por um país e o outro.
Concluo, pois, que povos e culturas fortemente enraizados, dificilmente são, em sua totalidade, dominados.
Acredito que com a transferência total de Macau (50 anos) aos domínios chineses a presença lusitana seja totalmente aniquilada ou absorvida, permanecendo viva apenas nos monumentos arquitetônicos já tombados, e na insistente presença de uma minoria portuguesa que por saudosismo ou identidade chula, permanecerá.
Elizabeth Dehnhardt da Silva Kieling
Historiadora formada pela ULBRA –
Universidade Luterana do Brasil- Canoas – RGS
Residindo atualmente na China ( Shenzhen), escreve um livro sobre Macau.
Matéria enviada pela autora em 06/08/2008.
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